Médicos contra a injeção antifumo

O Conselho Regional de Medicina vai pedir inquérito contra a aplicação do que ficou conhecido como 'injeção cubana'

Adriana Dias Lopes

Na segunda-feira, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) vai pedir ao Ministério Público Estadual a abertura de inquérito civil contra a aplicação de um tratamento que virou moda na cidade: a "injeção cubana" antifumo. O motivo foi a quantidade de reclamações recebidas de médicos questionando a segurança e a eficácia do produto.
"Só nos últimos três dias, oito médicos apresentaram relatos formais contra essa injeção", conta Henrique Carlos Gonçalves, primeiro-secretário do Cremesp. "O número já indica que há indícios de que alguma coisa não está certa. Na segunda-feira, vamos protocolar um documento no ministério."

Sem nome comercial, já que é resultado da mistura de substâncias, o remédio ficou conhecido como injeção cubana pelo fato de ter sido trazido - em parceria com o Instituto Menetrier de São Paulo - por um cubano, o biomédico radicado nos Estados Unidos Sergio Menendez.

R$ 2.600,00

O sucesso do produto é indiscutível. Em apenas dois meses, cem pessoas já tomaram as injeções. Cada uma desembolsou R$ 2.600,00. "Por conta da demanda, vamos começar a aplicar também no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte", conta Ana Cristina de Carvalho Barreira, médica responsável pelo Instituto Menetrier.

O tratamento é rápido. Os pacientes recebem na primeira consulta três injeções. Duas atrás da orelha e uma muscular. Nos três dias seguintes, tomam um comprimido manipulado a cada seis horas e ficam com um adesivo durante 15 dias. "Depois disso a dependência física do cigarro acaba. Nosso índice de sucesso é de 80%", diz Ana Cristina. "Menendez também usa a injeção em sua clínica, nos Estados Unidos, com a mesma eficácia."

O problema apontados pelos médicos é que a combinação das três principais substâncias usadas na injeção podem trazer sérios riscos para a saúde do paciente. São elas: atropina, escopolamina e clorpromazina. Agem diretamente no sistema nervoso central.

A última é um poderoso antipsicótico - contra psicoses -, de uso controlado. Ou seja, prescrito com retenção da receita. "Essas drogas bloqueiam os receptores de nicotina e evitam a síndrome de abstinência", explica Ana Cristina, do instituto.

Mas o diretor da Academia de Medicina de São Paulo, o psiquiatra Guido Palomba, condena o uso da clorpromazina na injeção antifumo. "A clorpromazina só pode ser usada, seja em que dose for, por quem sofre de surtos psicóticos, como delírios. Aliás, a indicação é para sedar quem está delirando", diz. "Quando combinada com as outras duas substâncias, vira um coquetel absolutamente imprevisível."

A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) também contra-indica a injeção. "A atropina pode interferir no ritmo cardíaco", conta Raimundo Marques de Nascimento Neto, diretor da entidade. "Eles estão vendendo uma ilusão perigosa. E cara."

A atropina é usada com freqüência em ambiente hospitalar para tratamentos cardiovasculares. "Ela é aplicada, por exemplo, na reversão de paradas cardíacas", conta a cardiologista Jaqueline Scholz Issa, diretora do Programa de Tratamento do Tabagismo do Instituto do Coração (Incor).

A cardiologista do Incor soube da existência da injeção há um mês, quando foi procurada por um colega de profissão aflito com os sintomas de uma paciente. "Ele me ligou por conta da minha especialidade com tabagismo. Estava com uma moça que sofria há três dias de alucinações, completamente fora do ar, logo depois de ter tomado a injeção. Suspendi imediatamente o tratamento."

De acordo com Murilo Freitas Dias, chefe da unidade de farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a atropina e a escopolamina podem também alterar a função mental, o sistema respiratório e provocar hipotermia. "O local de aplicação dessas substâncias tem de estar muito bem estruturado", diz ele.

SEGREDO

A médica responsável pelo instituto não revela a quantidade usada no coquetel da injeção. "Não dá para revelar. Mas o componente usado em maior quantidade é a clorpromazina. Em menor, a atropina", diz ela. "Mais: todos os pacientes passam por uma avaliação clínica, o que inclui um eletrocardiograma antes do tratamento."

Os médicos também alertam que as três substâncias não são indicadas oficialmente para tratamentos antifumo. "Os únicos tratamentos seguros para tabagismo, com o aval de órgãos competentes de saúde em todo o planeta, são os que usam dois tipos de antidepressivos (bupropiona e a nortriptilina) ou um anti-hipertensivo (clonidina) ou de reposição de nicotina", explica o pneumologista Sergio Ricardo Santos, coordenador do Prevfumo, centro de prevenção ao cigarro da Universidade Federal de São Paulo. "Em última análise, se esse coquetel ajudar alguém a parar de fumar, é por conta do efeito placebo."

Os remédios manipulados entram numa espécie de vácuo na lei. "A legislação atual é geral e não contempla detalhes, como a obrigação de se informar ao governo sobre a associação das substâncias. Mas há responsáveis por qualquer problema que possa ocorrer: o médico e o farmacêutico", conta Dias, da Anvisa. "E é claro que se houver denúncia significativa, a Anvisa pode agir,sim."

Fonte: OESP em 03-09-2005.