Para EUA, setor do cigarro age como
máfia
TABAGISMO
Argumento é a base de acusação do governo americano
em julgamento bilionário que começará na próxima
semana
NEIL BUCKLEY
DO "FINANCIAL TIMES"
Em 15 de dezembro de 1953, os presidentes de várias das maiores
empresas de cigarro dos EUA se reuniram no hotel Plaza, em Nova York,
num encontro incomum. A questão em pauta eram as crescentes preocupações
médicas com os riscos do cigarro à saúde. Cinco
estudos já haviam sugerido a existência de vínculos
entre o cigarro e o câncer -e a imprensa estava tomando nota do
assunto.
Numa das salas de reuniões do hotel, os presidentes da American
Tobacco, da Benson & Hedges, da Philip Morris e da US Tobacco deram
o primeiro passo para criar o que viria a tornar-se uma estratégia
unificada para passar ao público a mensagem tranqüilizadora
de que não havia evidências de que o cigarro fizesse mal
à saúde.
Ao longo dos 50 anos seguintes, as empresas de cigarro americanas iriam
conspirar para fraudar os consumidores, negando os perigos do fumo e
da fumaça inalada por não fumantes. Iriam financiar cientistas
solidários com elas para que conduzissem pesquisas que semeassem
a confusão em torno da questão. Iriam manipular os níveis
de nicotina para criar dependência entre os fumantes e iriam propositalmente
difundir o cigarro entre os jovens. Porém, em boa parte desse
tempo, elas sabiam que existia um vínculo causal entre o cigarro
e a doença.
Isso tudo, ao menos, é o que o Departamento de Justiça
americano tentará provar numa ação que começará
a ser julgada no próximo dia 21. Os depoimentos das primeiras
testemunhas do governo deverão ser divulgados nesta segunda-feira.
A ação talvez se torne o maior ataque na Justiça
já lançado por um governo contra uma indústria
legal. O argumento essencial é similar ao das ações
movidas por Estados americanos e das movidas por fumantes. Mas o julgamento
em questão será diferente de tudo já visto nas
cortes do Mississippi ou do Alabama.
De um lado, está o Departamento de Justiça, que, usando
documentos incriminadores vazados desde o interior das empresas ou descobertos
em processos anteriores ou ainda por meio de suas próprias investigações,
passou cinco anos montando os mais abrangentes argumentos já
preparados no combate à indústria do tabaco. De outro
lado, estão os recursos somados das maiores empresas do ramo
e suas fileiras de advogados de primeira linha.
O governo dos EUA afirma que os réus devem restituir US$ 280
bilhões em "lucros indevidos" -um valor mais do que
suficiente para levar as empresas à falência. Para conseguir
isso, porém, terá de provar -não a um júri,
mas a uma juíza única- que as empresas de cigarros foram
culpadas de fraude no passado e que existe a probabilidade de que continuem
a fazê-lo no futuro. Não será um empreendimento
fácil. O governo também terá de justificar sua
exigência de US$ 280 bilhões.
A razão é que não se trata de um processo de indenização
por falha de um produto, alegando que os artigos feitos pela indústria
prejudicaram um fumante ou grupo de fumantes específicos, como
os que o setor dos cigarros já está acostumado a combater.
Em lugar disso, a ação é movida sob a Lei de Organizações
Corruptas e Influenciadas por Fraudadores (Rico), de 1970, promulgada
para combater o crime organizado.
Máfia
"O argumento principal do governo é que a indústria
americana do cigarro foi um empreendimento ilegal, como a máfia",
diz Martin Feldman, analista da Merrill Lynch para o setor do tabaco.
A indústria nega ter cometido fraudes no passado e afirma achar
que o governo não conseguirá convencer a juíza
Gladys Kessler, que presidirá o processo, de que há a
probabilidade de que as empresas violem a Rico no futuro.
Ademais, diz o setor, as restrições à propaganda
de cigarros que o governo está pedindo, ao lado da restituição
de US$ 280 bilhões, em grande medida duplicam as que já
estão em vigor com o acordo de 1998 conhecido como Master Settlement
Agreement. Foi o acordo pelo qual as empresas de cigarros concordaram
em pagar US$ 246 bilhões a 50 Estados americanos ao longo de
25 anos. Isso pôs fim aos processos litigiosos movidos pelos Estados
e inspirou o governo federal a iniciar sua própria investida
legal.
"Quando a ação do governo foi aberta, em 1999, dissemos
achar que ela estava equivocada com base na lei, nos fatos e na política.
Nada mudou desde então", diz William Ohlemeyer, um dos advogados
da Philip Morris, a maior fabricante de cigarros dos EUA.
A Philip Morris é uma das seis rés. As outras são
a RJ Reynolds, segunda maior empresa de tabaco nos EUA; a Brown &
Williams, terceira maior; a Lorillard; a Liggett; e a filial local da
British American Tobacco. Também são rés no processo
duas associações do setor que já deixaram de existir.
Acusações
As alegações contidas nas últimas constatações
de fatos, divulgadas em julho, são extremamente graves: "As
empresas de cigarros vêm praticando e executando há 50
anos -e continuam a praticar e executar- um esquema maciço de
fraude do público".
Trabalhando com as duas organizações do setor, o Instituto
do Tabaco e o Conselho de Pesquisas do Tabaco, elas teriam feito uma
campanha de relações públicas para desmentir os
males causados pelo cigarro e gerar controvérsias em torno das
pesquisas científicas. A campanha teria começado pouco
após a reunião no hotel Plaza, com a Declaração
Franca aos Fumantes, um anúncio assinado de página inteira
publicado pelas empresas em 448 jornais dos EUA. "Acreditamos que
os produtos que fabricamos não são nocivos à saúde",
afirmou a declaração, que, porém, prometia que
seriam conduzidas pesquisas para descobrir a verdade.
Defesa
A indústria do cigarro rejeita todas as acusações,
dizendo que não houve fraude. Um dos argumentos centrais da defesa
será que, desde 1966, dois anos após um relatório
do diretor nacional de saúde dos EUA ter afirmado inequivocamente
que o cigarro causa câncer, os maços de cigarros trazem
um aviso de saúde, obrigatório por medida federal, informando
que o produto pode fazer mal à saúde. Então, como
as empresas poderiam ter enganado alguém?
"Quando foi constatado o vínculo entre cigarros e câncer,
o Congresso precisou decidir se proibia os cigarros ou se fornecia avisos
e informações para que as pessoas pudessem tomar uma decisão
com base em informações corretas", afirma o advogado
William Ohlemeyer. "A decisão tomada foi não proibir
o cigarro, mas fornecer avisos", completou.
Para as empresas, não houve conspiração. A reunião
no hotel Plaza que teria dado origem ao plano todo nem sequer foi secreta:
o Departamento de Justiça foi avisado com antecedência,
para que as empresas pudessem evitar o perigo de violar um decreto antitruste
que proibia reuniões entre as empresas, e a reunião foi
noticiada em diversos jornais. A subseqüente Declaração
Franca aos Fumantes teria refletido o consenso científico vigente
na época.
A composição do setor do cigarro também mudou radicalmente
nos últimos 50 anos, algo que, segundo as empresas, reflete a
existência de uma concorrência dinâmica que não
condiz com a idéia de conspiração. A indústria
de cigarros poderá ainda partir para a ofensiva, destacando os
vínculos de longa data entre o Estado americano e as empresas
-sem falar nos bilhões de dólares que os governos ganham
em impostos sobre produtos à base de tabaco.
Os fabricantes de cigarro estão confiantes nas chances de vitória
de sua defesa, que já foi burilada em dezenas de outras ações.
Diferença
Dick Daynard, adversário de longa data do setor e presidente
do Projeto de Responsabilidade dos Produtos à Base de Tabaco
da Universidade Northeastern, que incentiva a abertura de processos
contra empresas de cigarro, argumenta, porém, que os júris
decidiram em alguns casos que as indústrias do setor haviam cometido
atos ilegais, mas que não podiam ser responsabilizadas pela decisão
de fumar tomada por um indivíduo. Só que desta vez, afirma,
não será preciso encontrar nenhum vínculo desse
tipo, já que o argumento legal só diz respeito à
conduta das empresas. E ainda os documentos mais condenatórios
serão apresentados a corte.
O governo terá também de convencer a juíza de que
as empresas continuarão a cometer fraudes. A indústria
do cigarro argumenta que as restrições implantadas pelo
acordo de 1998 já praticamente impossibilitam qualquer violação
futura. Daynard discorda disso.
O maior desafio do governo, no entanto, talvez seja convencer o tribunal
de que apenas o pagamento da restituição no valor de US$
280 bilhões impedirá o setor de voltar a cometer violações.
Fonte: Folha de São Paulo em 18-09-2004.