Souza Cruz espionou ativistas antifumo, sugere documento

No texto, advogado dos EUA recomenda que a empresa contrate detetives no Brasil para espionar autores de ações contra ela

Ex-advogados e um detetive confirmam investigação contra autores de ação de indenização contra a indústria do tabaco

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os advogados Mario Albanese e Luiz Mônaco, autores da primeira ação judicial no Brasil contra a indústria do cigarro, dizem que há anos têm a impressão de que são seguidos.
Mônaco conta que um cinegrafista o acompanhava como uma sombra pelos bairros de São Paulo no final dos anos 90. "Eu estava na Liberdade com um amigo e lá estava o rapaz. Ia para o Ibirapuera e ele estava lá. Um dia o flagrei dentro de um carro me filmando."
Albanese lembra que seu telefone fazia tantos sons esquisitos que ele tinha a impressão de que suas conversas eram sempre a três: ele, o interlocutor e algum abelhudo. "Eu já falava para o gravador", diz, rindo.
Dois documentos sobre a Souza Cruz, obtidos pela Folha, podem explicar a sensação que atormentava Albanese e Mônaco. São dois faxes enviados em 1997 por um advogado do escritório americano Chadbourne & Parke -um dos mais famosos dos Estados Unidos, que defende fabricantes de bebidas alcoólicas e um de armas atômicas- para o diretor jurídico da Souza Cruz à época, Marcio Fernandez.
Neles, o advogado David Wallace recomenda que a Souza Cruz contrate detetives para investigar a vida dos que recorreram à Justiça para tentar obter indenização pelos males provocados pelo cigarro.
As cartas traçam o perfil do investigador "para supervisionar nossos esforços investigativos em torno das disputas judiciais sobre fumo e saúde no Brasil" e ressaltam a necessidade de um profissional ilibado.
"Nessa área, como em todos os assuntos relativos às ações judiciais de fumo e saúde, temos que evitar a aparência de impropriedade", diz o texto.
Um dos detetives citados num dos faxes, o inglês Christopher Harris, confirmou para a Folha que a sua empresa, a Varsity London, trabalhou para a Souza Cruz.
A Varsity tem escritórios em Curitiba e em Oxford. Ao ser questionado sobre a investigação de 1997, ele respondeu: "Quando trabalhava na filial Brasil/Curitiba, fui diretor de operação em várias investigações, inclusive esta que menciona", contou por e-mail Harris, que hoje vive na Inglaterra. Segundo ele, quem atuou diretamente nas investigações foi Thomas Almeida, atual gerente da empresa em Curitiba.
Almeida disse à Folha que não poderia confirmar a informação porque os contratos da agência são confidenciais.
Dois advogados que já trabalharam para a Souza Cruz contaram à Folha, sob a condição de que seus nomes não fossem revelados, que a empresa usava detetives para bisbilhotar a vida dos que a processavam.
O atual diretor jurídico da Souza Cruz, Antonio Rezende, diz que a empresa não seguiria uma recomendação ilegal, na interpretação dele, de um advogado americano.
Os dois documentos estão depositados em Guilford, nos arredores de Londres, por decisão da Justiça dos EUA porque a dona da Souza Cruz, a BAT (British American Tobacco), é uma empresa britânica.
A decisão de tornar públicos os documentos secretos da indústria integra o processo que resultou na maior indenização da história, de US$ 368 bilhões (R$ 622 bilhões), a serem pagos pelos fabricantes de cigarro aos Estados americanos.
Em 1997, só havia uma ação judicial de peso contra a indústria do cigarro no Brasil -a da Adesf (Associação em Defesa da Saúde do Fumante), criada por Albanese e Mônaco.
A Adesf defende na ação que a indústria fraudou o código do consumidor porque sabia desde os anos 50 que cigarro causava câncer e escondeu essa informação. Seu objetivo é facilitar ex-fumantes do Estado de São Paulo a obter indenização.
Uma estimativa aponta que a indústria pode perder R$ 50 bilhões caso a Adesf vença. Em primeira instância, a juíza Adaísa Halpern decidiu, em abril de 2004, que houve fraude e condenou a Souza Cruz e a Philip Morris. As empresas, porém, conseguiram suspender a sentença. O Tribunal de Justiça de São Paulo analisa um recurso dos fabricantes, que tentam anular a condenação.
A pesquisadora Stella Bialous, que estuda os documentos da indústria do cigarro sobre o Brasil, diz que a Souza Cruz e a Philip Morris "ficaram em pânico" com o processo. "Essa ação é única no mundo. A indústria ficou chocada com a possibilidade de entidades de outros países imitarem a Adesf. É nesse contexto que a espionagem precisa ser entendida".
Investigar a vida dos que processam uma empresa não é crime desde que não haja escuta telefônica ou violação de correspondência, segundo Dirceu de Mello, professor titular de direito criminal da PUC-SP. "Só observando, um investigador pode descobrir, por exemplo, que o autor da ação é fumante inveterado, e isso pode mudar a sua imagem."

Folha de São Paulo, em 03/003/08