Coletivas de imprensa e sapatadas
na cara
A cena foi ao mesmo tempo grotesca e reveladora. O
jornalista iraquiano Munthadhar al-Zaidi, de maneira
inusitada, levantou-se em meio a uma coletiva de imprensa,
mirou a cara do presidente americano - desafeto de seu povo -
e arremessou num espaço de tempo recorde os seus dois sapatos
contra ela. Errou porque o espantado Bush desviou-se a tempo,
mas cumpriu o seu papel: expressou para o mundo inteiro a sua
indignação.
A imprensa, infelizmente, como costuma acontecer nesses
casos, deu maior importância à cena propriamente dita e,
posteriormente, às versões difundidas pelos amigos do "dono da
guerra" ( "Muntadhar é comunista, fã de Guevara" e outras
patacadas do mesmo teor) do que à razão legítima para tal
forma de agressão.
Além da identificação com o povo iraquiano, agredido por
uma poderosa nação estrangeira, o jornalista deve ter ficado
indignado, como todos nós, com a farsa daquela coletiva, um
espetáculo midiático hipócrita que reunia o invasor e os
militares iraquianos, seus prepostos, para uma entrevista
demagógica de um presidente fracassado em fim de mandato.
Infelizmente, muitas coletivas de imprensa não passam de
farsas, de manipulações engendradas por organizações
(empresas, governos, entidades) e agências de
comunicação/assessorias para seduzir veículos e jornalistas.
Reuniões com informações de reduzida relevância (o que menos
interessa na maioria delas é o conceito de notícia), mas
regadas a bebidas finas, camarões e brindes de todos os tipos
(a moda agora é pendrive porque, como explicam os entendidos,
é útil e barato).
Certamente, você já deve ter ouvido falar ou estado
presente (se é jornalista que cobre o setor automotivo) nas
coletivas promovidas por montadoras em resorts, com direito a
todo tipo de mordomia, algumas inclusive realizadas nos mares
do Caribe. Uma demonstração contraditória de riqueza para
empresas, como a Ford e a GM americanas, que andam caindo
pelas tabelas, à beira da bancarrota, como repete todos os
dias a mídia do planeta inteiro.
Coletivas são realizadas a torto e a direito
particularmente nas grandes cidades e a maioria delas não
serve para coisa alguma. Os bons jornalistas (aqueles que
preferem boas pautas à comida farta) sabem separar o joio do
trigo e, educadamente, se recusam a participar de quase todas
porque se deram conta de que pouco acrescentam (e podem
irritar bastante) ou contribuem para qualificar a informação
jornalística.
Um profissional competente identifica com facilidade as
intenções de quem convida para estas reuniões porque elas já
ficam evidentes nos releases que as apresentam, no convite via
e-mail ou no contato telefônico com as redações. Pura
rasgação de seda, conversa fiada, um montão de adjetivos e
obas-obas sem sentido, de hipocrisias e cinismos empresariais.
Os jornalistas e os veículos, de um bom tempo para cá, têm
se tornado reféns das organizações e dos governos e, com raras
exceções (que bom, elas existem felizmente), acabam apenas
"penteando" releases, copidescando material distribuído pelas
assessorias ou reproduzindo falas de executivos em coletivas
subsidiadas por programas de "media training". Por isso, as
notícias parecem todas iguais (muitas são mesmo iguais, com os
mesmos erros de acentuação, os mesmos títulos contidos nos
releases) nos jornais, nos programas de rádio e TV e mesmo na
web. Uma pobreza e uma submissão de dar dó.
Todos sabemos: muitos donos de veículos e editores mandam
os jornalistas correrem atrás destas coletivas porque querem
agradar atuais e futuros anunciantes ou mesmo porque não sabem
pautar coisa alguma, não têm faro de notícia e, diante de um
entrevistado, mal conseguirão formular uma pergunta
minimamente inteligente. Por isso, o jornalismo brasileiro tem
esta cara e este cheiro de "coisa arrumada", de entrevista no
sofá da Hebe Camargo ou da Ana Maria Braga (o papagaio
da apresentadora, na verdade, é uma alusão à postura do
jornalista diante das fontes). Que os proprietários sejam
assim tudo bem, mas também os jornalistas?
A maioria das coletivas deve ser solenemente desprezada
porque, no fundo, elas representam uma afronta à dignidade
jornalística e ignoram o papel do profissional de imprensa e
dos veículos efetivamente comprometidos com o debate, o
interesse público.
Evidentemente, há coletivas absolutamente indispensáveis,
agências/assessorias e empresas sérias e ninguém está aqui
para condenar as coletivas ou os releases como se não fossem
processos ou produtos normais em nossa atividade. Mas a
banalização, a vulgarização, a falta de profissionalismo, a
visão equivocada do que interessa aos jornalistas e sobretudo
a farsa, a tentativa de manipulação incomodam e muito.
Para 2009, que se avizinha, talvez possamos adotar,
conjuntamente, algumas decisões importantes com respeito às
coletivas.
Em primeiro lugar, não compareça a coletivas de empresas de
biotecnologia para ouvir a conversa idiota de que os
transgênicos irão matar a fome do mundo e que eles contribuem
para a saúde do planeta ao reduzir o consumo dos agrotóxicos.
Lembre-se que a Monsanto ainda ganha mais dinheiro (muito
mais) vendendo veneno do que com as sementes transgênicas (se
deixarmos que ela obtenha o monopólio, como pretende, esta
relação pode se inverter).
Em segundo lugar, não acredite em empresas que proclamam
abertamente, gastando tubos de dinheiro em propaganda, que são
socialmente responsáveis, éticas, transparentes (você tem
visto o noticiário sobre a Siemens, com propina para lá e para
cá, como andam repercutindo os grandes jornais do mundo todo,
inclusive do Brasil?).
Em terceiro lugar, desconfie também dos veículos que falam
mal de determinadas organizações nas reportagens e até nos
editoriais e buscam patrocínio delas para seus cursos de
formação dos jornalistas (a Folha e o Estadão têm parceria com
a Philip Morris, uma das gigantes do Tabaco que acaba de ser
condenada agora por propaganda enganosa nos EUA).
Finalmente, não compareça a coletivas promovidas para fazer
a apologia das melhores empresas para trabalhar, as mais
admiradas, as melhores em gestão de alguma coisa, as mais
sustentáveis porque esses rankings não são confiáveis e servem
apenas para arrebanhar anúncios para editoras (você já
percebeu que sempre tem um veículo por trás dessa história e
páginas inteiras de anúncios das empresas vencedoras nas
edições que anunciam a premiação?).
Os jornalistas não deveriam ser utilizados como "mula" para
"notícias" que servem a determinados interesses e engordam os
lucros de agências de comunicação/propaganda e assessorias que
se prestam ao jogo sujo de "limpeza de imagem" de organizações
predadoras.
É bom repetir sempre o que todos já deveríamos saber: "não
tem almoço grátis", logo desconfie de quem convida para
almoçar e, de imediato, já avisa que vai pagar a conta,
distribuir brindes ao final da comida etc.
Estamos precisando de alguns Muntadhar al-Zaidi por aqui
porque temos empresas e governos aos montes com a cara do Bush
desfilando impunemente à nossa frente. Se é para fazer
justiça, vai faltar sapato.
Em tempo 1: Você já leu o livro da
Marie-Monique Robin - O mundo segundo a Monsanto, lançado pela
Radical Livros, com apresentação da Marina Silva? Puxa, um dos
melhores trabalhos de jornalismo investigativo destes últimos
anos e que, de forma contundente, expõe as mazelas da
corporação de St. Louis. Se você ainda não ouviu falar do
herbicida 2,4,5-T, de dioxina, agente laranja, Posilac, do
caso Arpad Pusztai, de perseguições, golpes baixos contra
pesquisadores, jornalistas, aproveite as férias para uma
atualização importante. Há algo mais além dos prêmios
agroambientais.
Em tempo 2: Parabéns para a ANVISA que,
depois de audiências públicas, conseguiu elaborar normas mais
rígidas para a propaganda de medicamentos, dando um safanão na
Big Pharma e em parcela importante da comunidade da saúde que
anda fazendo o jogo dos laboratórios. Quem sabe , de agora em
diante, diminui um pouco a farra dos brindes para médicos,
amostras grátis viciadas, uso de celebridades para vender
remédios e estimular a auto-medicação.
Em tempo 3: Mais um recall dos grandes,
novamente agora da Volks por causa de um problema no freio de
vários modelos, inclusive o Fox, aquele que detonava o dedo
dos motoristas. Será que as montadoras, além de fazerem lobby,
chorarem o dia todo por dinheiro dos governos, praticarem uma
gestão incompetente (via GM e Ford americanas), não poderiam
também aprender a fazer carro com qualidade? Belo presente de
Natal este da Volks, um presente de grego ou de alemão?
Aí estão várias empresas e segmentos industriais que também
mereciam uma bela sapatada. Na cara e no traseiro. Muntandhar
bem que poderia dar uma coletiva explicando como fazer
isso. Pode deixar a pontaria que a gente acerta por aqui. Com
o famoso jeitinho brasileiro.
* Wilson da Costa Bueno é
jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto
Comunicação e Pesquisa. Editor de 4 sites temáticos e de 4
revistas digitais de comunicação. veja
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