A legislação brasileira é implacável com as empresas
cujos produtos e serviços provocam danos aos
consumidores e/ou a terceiros, impondo-lhes a chamada
responsabilidade objetiva.
Assim, todos os fabricantes estão obrigados a
indenizar, independentemente de culpa, as vítimas dos
prejuízos causados por seus produtos. Todos os
fabricantes? Não. Infelizmente, parece haver uma única
exceção: a indústria do tabaco, embora o cigarro seja
produto que provoca danos aos fumantes ativos e passivos
e aos cofres públicos, sendo responsável por 200 mil
mortes anuais no Brasil.
Ao isentar a maior fabricante de cigarros do país do
dever de indenizar os danos causados a fumante em
julgamentos recentes, a Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça – que se autoproclama o “Tribunal da
Cidadania” – confirma uma tendência do Poder Judiciário
brasileiro de tratar de forma condescendente a indústria
do tabaco.
A interpretação da legislação feita pelos
pareceristas contratados pela indústria, e assimilada
pela jurisprudência pátria, utiliza dois pesos e duas
medidas, sempre a privilegiar a indústria em detrimento
de suas vítimas.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo,
só se aplica a benefício da indústria, seja para reduzir
o prazo que alguém acometido de doença muitas vezes
fatal tem para processar a empresa, seja para incluir o
produto na categoria daqueles de periculosidade inerente
(art. 9º).
Por outro lado, sem justificativa plausível, não
aplicam o CDC para responsabilizar a indústria por nunca
ter informado pelos danos do tabagismo; menos ainda para
favorecer o consumidor no quesito relativo à inversão do
ônus da prova. Nenhuma palavra sobre a responsabilidade
objetiva, que independe de culpa.
Para esses intérpretes o CDC parece feito à justa
para isentar as empresas, não guardando relação com seu
objetivo inicial: a proteção dos consumidores.
No voto do Ministro Luis Felipe Salomão, relator do
primeiro caso, afloram tais situações.
Apenas um exemplo: apesar de enquadrar o cigarro como
produto de periculosidade inerente, conceito do CDC, o
que implica no dever do fabricante de informar ostensiva
e adequadamente sobre a respectiva nocividade e
periculosidade, o voto exclui o dever da indústria de
indenizar pois, à época dos fatos, não havia CDC, logo,
não haveria dever de informar.
Ora, aplica-se o CDC para enquadrar o produto, mas de
que vale tal enquadramento se não se pode aplicar a lei
no que tange à sua violação!
O direito do consumidor é expressão dos direitos
humanos. Logo, a universalidade é a ele aplicada,
independentemente do tempo. É um direito universal.
A decisão entende que não havia, nas décadas de
cinqüenta, sessenta e setenta, norma que impusesse às
indústrias do fumo o dever de informar.
É no mínimo curiosa a conclusão de que a indústria,
sabedora que era dos malefícios causados pelo cigarro,
pudesse ocultá-los de seus consumidores que, embora
pudessem genericamente saber que o cigarro poderia
causar-lhes mal, não tinham ciência efetiva e real dos
riscos que corriam.
A justificativa do relator seriam os costumes e a
visão do homem médio da época.
Que costumes seriam esses que não impunham a uma
parte o dever de informar à outra dado tão essencial
quanto o produto causar dependência, doença e morte?
Se hoje há redução drástica no número de fumantes (no
Brasil a prevalência passou de 32% em 1989 para de 17,2%
em 2009) é justamente porque, dentre outras medidas,
informação essencial passou a ser transmitida aos
consumidores.
Aliás, o que parecem não saber os magistrados é da
existência de ação direta de inconstitucionalidade
questionando as advertências constantes dos maços de
cigarro.
A indústria não só nunca informou como busca
judicialmente derrubar as normas que a obrigam a
tanto.
Se o magistrado quer, como faz no caso, julgar com
base não no caso concreto, mas nas circunstâncias em que
se deu e se dá o uso do cigarro, há que, aí sim, fazer
um estudo dos impactos sanitários, sociais, econômicos e
ambientais do consumo do tabaco que ensejaram,
inclusive, a celebração do primeiro tratado
internacional de saúde pública, a Convenção Quadro para
o Controle do Tabaco, ratificada pelo Brasil.
Sentença norte americana, confirmada em corte de
apelação, que examinou milhares de documentos internos
da indústria, reconheceu serem as controladoras das duas
maiores empresas nacionais, além de outras sete
multinacionais, os vetores da epidemia tabagística no
mundo.
Essas empresas, de forma conjunta e globalmente,
agiram de má-fé com o objetivo de fraudar e enganar
governos, opinião pública e consumidores, deixando de
informar o que já sabiam sobre os malefícios de seu
produto, negando e desacreditando pesquisas sérias a
esse respeito. Para acessar trechos em português da
sentença: http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/176_sentencaKesslertraducao.pdf
Esses fatos devem ser vistos de forma global, e não
isoladamente. Não se pode aceitar que o Judiciário do
país rasgue o Código de Defesa do Consumidor, a duras
penas positivado, e permita às fabricantes do produto
mais nocivo do mercado ficarem impunes pelos danos que
causam.
Um peso e uma medida. É o que se espera do
Judiciário. |