ENTREVISTA Quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

LUÍS MÔNACO "A INDÚSTRIA DO FUMO NÃO TEM FUTURO"
O advogado que conseguiu a maior vitória contra fabricantes
de cigarro no Brasil promete indenizações bilionárias para
fumantes e ex-fumantes de todo o País

Alexandre Teixeira


No último dia 12, uma juíza de São Paulo mandou a indústria do cigarro indenizar fumantes e ex-fumantes paulistas. Em uma decisão inédita na Justiça brasileira, Adaísa Halpern, da 19ª Vara Cível, condenou a Souza Cruz e a Philip Morris por omissão de dados sobre os malefícios do fumo e veiculação de propaganda enganosa. As empresas podem recorrer, mas, se ao fim do processo a condenação for mantida, as indenizações são estimadas em R$ 52,5 bilhões. Por trás da conta – e da própria ação judicial, iniciada há oito anos – está a Adesf (Associação em Defesa da Saúde do Fumante), uma ONG criada em 1994 com o propósito específico de mover uma cruzada contra a indústria tabagista. Nesta entrevista à DINHEIRO, seu diretor jurídico, o advogado Luís Mônaco, prevê que a decisão da Justiça paulista será estendida para todo o Brasil, e avisa: “Estamos começando a virar o jogo contra os fabricantes de cigarro”.

DINHEIRO – Como o sr. chegou ao valor de R$ 52,5 bilhões de indenização aos fumantes e ex-fumantes?
LUÍS MÔNACO – Essa estimativa foi feita levando em conta o valor mínimo: R$ 1,5 mil a cada ano que a pessoa passou fumando, desde 1990, quando foi aprovado o Código de Defesa do Consumidor. Isso se refere a danos materiais, ou seja, quanto você gastou com um produto, e o dano material decorrente dos constrangimentos que o fumante passa ao ser impedido, por exemplo, de entrar em um restaurante. Se você mencionar este valor a um jurista americano, ele vai dar risada.

DINHEIRO – Para chegar nesses R$ 52,5 bilhões, o senhor diz que 2,5 milhões de pessoas teriam que entrar na Justiça para reivindicar indenização. Esse número é razoável?
MÔNACO – Eu conversei no domingo (15) à noite com o promotor de Justiça do Consumidor de Brasília, dr. Guilherme Fernandes Neto. Ele me disse que essa decisão vai se estender para o Brasil inteiro. Sendo assim, acho razoável.

DINHEIRO – As empresas que são rés no processo entendem que essa ação coletiva só beneficia associados da Adesf. Os demais cidadãos, inclusive em São Paulo, teriam de mover novas ações para pedir indenização.
MÔNACO – Nós fizemos uma ação civil, que se tornou pública, em nome de todos os fumantes e ex-fumantes do Estado de São Paulo, associados ou não da Adesf. Nós fomos ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) em maio do ano 2000 e eles (os fabricantes de cigarro) perderam por 5 a 0. Qualquer fumante ou ex-fumante de São Paulo é beneficiário dessa nossa ação.

DINHEIRO – Como e quando os fumantes poderão entrar com pedidos de indenização?
MÔNACO – Terminada esta fase inicial, que seria 1ª instância, 2ª instância e 3ª instância, e sendo mantida a sentença, ela vai para a chamada liquidação ou execução. Aí, as pessoas que se acharem no direito, fazem um processinho dentro do processo. Bastará juntar provas documentais, como fotos que provem que você fuma, e provas testemunhais.

DINHEIRO – Em uma perspectiva otimista, em quanto tempo se teria um desfecho deste caso que desse início ao pagamento de indenizações?
MÔNACO – No máximo em dois anos.

DINHEIRO – A indústria do cigarro tem um histórico impressionante de vitórias nas ações contra ela. Segundo dados da Souza Cruz, das 377 ações que foram impetradas a partir de 1995 só oito resultaram em condenações à indústria. Por que desta vez haveria de ser diferente?
MÔNACO – Quando começou esta onda de ações contra os fabricantes de cigarro, não havia as provas concretas (dos malefícios causados pelo fumo à saúde) que existem agora, vindas da Organização Mundial de Saúde. Hoje, o Ministério da Saúde fala que o cigarro provoca dependência, câncer, impotência. Então, já é uma verdade histórica. Essas oito ações (em que a indústria tabagista foi condenada) foram agora. Seis delas, no ano passado. Então, numa posição absoluta, eles ganharam muito mais ações, mas as últimas eles perderam. Estamos começando a virar este jogo.
DINHEIRO – O que é a Adesf, quem ela representa e o que ela pretende com esse processo?
MÔNACO – A Adesf é uma organização não-governamental destinada à defesa da saúde do fumante. A gente entende que o fumante, desde o início, é um dependente químico e uma vítima dos fabricantes de cigarro. E a associação foi criada por vários médicos e advogados que viam isso e queriam fazer alguma coisa. O trabalho é todo voluntário. Fornecemos material para escolas do Brasil inteiro para evitar que os estudantes comecem a fumar. E fazemos palestras e congressos. A Adesf representa todos os fumantes e ex-fumantes do Brasil, que hoje são mais de 47 milhões de pessoas.

DINHEIRO – A Adesf acusa Souza Cruz e Phillip Morris de veicular propaganda enganosa, mas as empresas dizem que não há nada específico contra elas.
MÔNACO – Enganosa é a publicidade que te leva a ter uma perspectiva diferente do produto que compra. Você tem lá aqueles caubóis maravilhosos, mas nós temos um vídeo que mostra todos eles morrendo de câncer no pulmão. Então, a publicidade era enganosa. O cigarro não traz sucesso, não traz beleza, não traz dinheiro, não traz nada. Mas é tudo isso que a publicidade vende. Então existe um aspecto subliminar muito importante. A pessoa não pode ter tudo de bonito que vê na televisão, mas pode ter um maço de cigarro. O maço é o amuleto. Isso nós provamos no processo.

DINHEIRO – A sentença favorável à Adesf determina um prazo de 60 dias para que os fabricantes de cigarro passem a incluir nas embalagens dados técnicos do produto. Que tipo de informação o consumidor precisa ter?
MÔNACO – São dezenas de informações. Por exemplo: quantos cigarros você pode fumar sem ter um problema de saúde?; quais são os produtos contidos no cigarro que podem provocar câncer? São vários, mais de 50, mas a indústria omite informações com relação à formulação. São 4.720 substâncias, segundo a Organização Mundial de Saúde. Um verdadeiro coquetel químico. Você não sabe que tem amônia e pólvora na fórmula e pó de mármore no papel. Não sabe que os fiapos do filtro vão se alojar no seu pulmão. Não sabe nem quem é o químico responsável pelo produto. O cigarro mata 200 mil pessoas por ano, segundo o Instituto Nacional do Câncer, e está aí, sem nenhuma informação ao consumidor.

DINHEIRO – A Phillip Morris tem publicado anúncios na imprensa sugerindo que adolescentes não fumem. Isso demonstra uma mudança de comportamento da indústria?
MÔNACO – Eu entendo que isso é uma forma de disfarçar o lobo de cordeiro. E entendo também que é uma publicidade disfarçada. É uma forma de dizer: “Olha, nós estamos no mercado, queremos vender nosso produto, mas não queremos que criança fume”. Como é que eles vão repor aqueles que deixam de fumar e os que morrem no fim da linha? O pulmão que até os 17 anos não podia suportar cigarro aos 18 pode? É outra publicidade enganosa.

DINHEIRO – O Ministério da Saúde há muitos anos adverte para os riscos do consumo de cigarro. O senhor acha razoável imaginar que algum fumante no Brasil hoje não saiba que o cigarro é prejudicial à saúde?
MÔNACO – Eu não digo que isso seja razoável de se afirmar. Entendo que evidentemente há uma gama de informações a partir daí. Mas não é o que a legislação manda. Você tem uma parca idéia, agora, do que o cigarro pode fazer. O fumante brasileiro continua muito mal informado. Ele tem um esboço de informação, dado pelo Ministério da Saúde e pelos meios de comunicação. Os fumantes de décadas passadas não tinham nenhuma informação.
DINHEIRO – O senhor é fumante?
MÔNACO – Não. Já fui, mas larguei há mais de 20 anos.

DINHEIRO – Qual é a sua motivação nesse processo contra a indústria do cigarro?
MÔNACO – Não há interesse profissional, porque nossa entidade é sem fins lucrativos. A motivação é a militância. Eu comecei como consultor da associação e acabei me envolvendo profundamente ao ver pessoas mutiladas (por doenças ligadas ao fumo) virem ao nosso escritório.

DINHEIRO – Como o governo brasileiro vem lidando com a questão do fumo no País?
MÔNACO – É lamentável como o governo está lidando com essa questão. Nós tivemos um avanço considerável quando José Serra era ministro da Saúde. Ele assumiu de peito aberto essa questão de saúde pública. Infelizmente, o governo Lula não tem feito nem 10% do que o Serra fez na sua época. Quando foi suspensa a Lei 10.167, que proibia a publicidade de cigarros em eventos esportivos a partir de 2003 (para garantir a realização da corrida de Fórmula 1 em São Paulo no ano passado), o governo trocou a soberania nacional por um evento. Cedeu-se à pressão dos organizadores. Ele (o presidente Lula) está sendo omisso e indo na contramão da história. E tem outra coisa: as cigarrilhas que ele fuma e os cigarros do ministro Palocci são um mau exemplo para o País.

DINHEIRO – O sr. reconhece o direito da indústria tabagista de produzir e vender cigarros no Brasil?
MÔNACO – Eu não tenho que reconhecer este direito. Este direito existe pela Constituição. O produto é considerado lícito. Por isso mesmo, ele foi responsabilizado. A licitude do produto não é passaporte para a impunidade. Você não pode colocar no mercado um produto que cause dano. E se causar dano você tem que especificar que dano pode causar. Eu tenho uma carta da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em que ela diz que, se fosse lançado hoje, este produto (o cigarro) seria impedido de ser comercializado. Esta carta está no processo.

DINHEIRO – Que futuro o sr. vê para a indústria tabagista?
MÔNACO – Eles próprios vêem que o futuro deles é o declínio completo. As novas gerações estão fumando cada vez menos. Há um declínio mundial na razão população X fumantes. O consumo per capita está diminuindo no mundo inteiro, porque o mundo inteiro está preocupado. O dispêndio que um governo tem (com os problemas de saúde pública relacionados ao fumo) é enorme. Hoje é calculado em um dólar e meio para cada dólar arrecadado (com a tributação da venda de cigarros). Então, o que o governo faz é arrecadar hoje e deixar o problema para daqui a 15 ou 20 anos.

DINHEIRO – Qual é o país modelo na administração da questão do fumo?
MÔNACO – A França e o Canadá têm legislações bem duras. É um caminho a ser seguido. Outro caminho é o da Inglaterra, que subiu extraordinariamente o valor de venda do maço de cigarro e com isso diminuiu o consumo. O cigarro brasileiro é o mais barato do mundo. O camarada com um real compra um maço de cigarro. Na Inglaterra, custa por volta de 5 libras (equivalentes a quase 30 reais).

DINHEIRO – O senhor acha que pode vencer a indústria tabagista?
MÔNACO – Vamos ganhar a ação. Não há como voltar atrás. Pode haver alguma diferença no sistema de indenização, nos valores das indenizações ou no prazo para adequar as embalagens, mas não
há como fugir do espírito da sentença, que colocou nos eixos um produto que não cumpria a legislação. Eu duvido muito que um desembargador ou um ministro do STJ venha a dizer: “Não, não cumpra a legislação”.

Fonte: Istoé Dinheiro em 25-02-2004