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Sociedade O
cigarro vai para a guilhotina
O governo francês proíbe
fumar em lugares públicos,
reforçando a luta européia contra o tabagismo
Antonio
Ribeiro, de Paris
Owen Franken/The New York
Times
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Bar em Paris: a fumaça vai acabar, mas a
cerveja morna continua |
Nem na margem esquerda nem na margem direita do
Rio Sena, mas na Ilha de Saint Louis, no centro de Paris, o bar-café
Louis IX está envolto por uma densa nuvem de nicotina das 7 às 22
horas. O "botequim de esquina" é um microcosmo da França, país onde
20% da população fuma desde que o embaixador Jean Nicot apresentou a
folha de tabaco dos ameríndios à corte de Luís XIV, o Rei Sol. Na
semana passada, o queijeiro Bernard entrou no Louis IX, pediu uma
taça de tinto e acendeu o cigarro enquanto folheava as páginas do
vespertino Le Monde, cuja principal manchete anunciava uma
nova lei, verdadeira guilhotina no hábito cotidiano de 12 milhões de
fumantes franceses. Seguindo as pegadas das legislações de vizinhos
europeus, a França proibiu que se fume em lugares públicos a partir
de fevereiro de 2007. Na nação berço das liberdades individuais – e
com governantes submissos à recorrente contestação popular –, a
medida chegou acompanhada de justificativa robusta. O tabagismo
mata, em média, treze franceses por dia. O primeiro-ministro
Dominique de Villepin assinou a lei invocando o velho princípio das
democracias liberais: o governo só deve interferir no comportamento
do cidadão quando ele prejudica o outro. Cinco mil fumantes passivos
morreram em 2005 por inalar as baforadas alheias – a maioria é de
garçons e parceiros de fumantes. A sete meses das eleições
presidenciais, o governo se empenha na tarefa hercúlea de tapar a
cratera de 9,7 bilhões de euros da Previdência Social. A deficitária
previdência francesa está assolada por fraudes, privilégios
arcaicos, mas também pelo custo dos tratamentos de doenças ligadas
ao tabagismo – 225 milhões de euros anuais, 75% da parte das taxas
geradas pela venda de cigarros e destinadas à saúde pública. Oito em
cada dez franceses aprovam a lei antifumo. Monsieur Bernard, por
exemplo, fumante de olhos avermelhados, encara a mudança com bom
humor. "Minhas chances de morrer sadio vão aumentar", diz, com a voz
de barítono.
Embora seja um ataque frontal à importante
cidadela do tabagismo europeu, a lei antifumo francesa não irá impor
o rigor tal como se vê nos Estados Unidos, país com igual proporção
de fumantes na população. Em São Francisco, na Califórnia, é
proibido fumar até ao ar livre, em parques, praças e praias. A
interdição na França abrange, num primeiro momento, empresas
públicas e privadas, estabelecimentos de ensino, hospitais, trens e
prisões – salvo dentro das celas individuais, cujo status equivale
ao das moradias. O governo empurrou para 2008 o prazo para
restaurantes, hotéis, bares, tabacarias, casas noturnas e cassinos
se aprontarem conforme manda a legislação. Os "fumódromos", se
equipados com sistema de ventilação independente e isolamento
completo, estão autorizados, mas os clientes não devem esperar
atendimento dentro deles. Os fumantes infratores pagarão multa de 75
euros e os proprietários, de 150 euros. Mais da metade das grandes
empresas francesas perceberam a chegada da legislação antitabagista
à Europa como águas que correm para o mar. Antes mesmo de a
interdição vigorar na França, baniram os cinzeiros de suas
dependências. É o caso da Renault: sua unidade de Sandouville deu o
exemplo, e lá não se fuma desde 1998. "Infelizmente, perdemos alguns
fumantes inveterados, mas ganhamos uma outra clientela, os sensíveis
ao odor de tabaco", diz Jean-Marie Riberpray, diretor da famosa
brasserie parisiense La Coupole, onde não se permite fumar desde
julho passado. "A lei trouxe fluidez ao serviço. Acabou a espera do
cliente por mesas em uma ou outra zona, agora só há área de
não-fumantes", completa ele. O governo francês vai destinar 100
milhões de euros para ajudar os fumantes a livrar-se do vício. Um
terço do preço dos tratamentos será reembolsado pelo Estado. Os
departamentos de tabacologia dos hospitais – 500 consultas diárias –
dobrarão sua capacidade de atendimento.
O princípio dura lex, sed lex nem sempre
conquistou inteiramente o espírito dos habitantes da península
itálica, aliás, nem só o deles. No que diz respeito à Lei Sirchia,
houve grande surpresa. Há dezoito meses não se fuma em lugares
públicos na Itália. Oito em cada dez italianos, segundo pesquisa do
Instituto Doxa, querem que a situação continue exatamente assim. O
ministro da Saúde, Francesco Storace, queria afrouxar a legislação
para marcar seu distanciamento dos lobistas. Deu meia-volta. O texto
da lei prevê multa de 275 euros para os infratores e, se o cigarro
for aceso perto de uma gestante ou criança, o valor dobra. Mas a
Itália não seria o que é sem sua capacidade criativa. Durante o
inverno, a elegante discoteca Gilda, em Roma, empresta um poncho de
lã com estampa publicitária ao cliente que deseja fumar na calçada.
"Os hospitais italianos registraram queda de 11% nos infartos e nas
mortes súbitas já a partir do quinto mês da aplicação da lei", diz
Bertrand Dautzenberg, pneumologista-chefe do Hospital
Pitié-Salpêtrière. Na Irlanda, a legislação fez baixar em 16% o
consumo de cigarros. A Inglaterra vai adotar a lei contra o fumo no
ano que vem, mas tolerará a fumaça nos pubs que não servem comida.
Monsieur Bernard, o queijeiro, aposta que seria melhor banir não o
cigarro, mas a culinária da ilha do outro lado do Canal da Mancha.
Pouca gente sentiria
falta. |