RUY CASTRO - Aprecie com moderação

RIO DE JANEIRO - Um dos motes mais instigantes da televisão pode cair nas próximas semanas, se a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) conseguir aprovar um pacote de restrições à publicidade de cerveja. Esse mote é a frase "Aprecie com moderação", enunciada ao fim de comerciais em que dezenas de jovens eufóricos são mostrados tomando cerveja -imoderadamente- como se ela fosse o elixir da felicidade, do sucesso com as mulheres ou da própria vida eterna.
O autor do mote, seja quem for, conseguiu resumir em três palavras mais idéias que se contradizem e se anulam do que qualquer tratado de lógica saberia explicar. "Aprecie com moderação", referindo-se ao ato de tomar cerveja, pressupõe que cabe a você racionalizar sobre a quantidade adequada à sua "apreciação" do produto e parar de beber antes de se embriagar. É fascinante, considerando-se que uma das funções de qualquer bebida alcoólica é justamente comprometer ou abolir a capacidade de racionalizar. É o que faz com que, depois de alguns chopes e julgando-se perfeitamente sóbrio, você dê 200 por hora no seu carro e o enfie no poste.
A frase pressupõe também que os bebedores são capazes por igual de exercer essa "moderação". Ela não prevê a existência dos alcoólicos potenciais -os compulsivos em geral, inclusive na bebida, e aqueles cujo organismo demora mais a acusar o álcool e dos alcoólicos na ativa, já dependentes do produto. Se esses bebedores fossem capazes de estabelecer um nível racional de "moderação", a indústria de cerveja teria quebrado há muito tempo.
"Aprecie com moderação" é uma cínica contradição em termos, tão flagrante quanto seriam frases parecidas aplicadas a outras atividades. Tipo: "Fume sem tragar". Ou "Aspire sem cheirar". Ou "Ejacule sem gozar".

Fonte: Folha de São Paulo em 16-04-2007.