Tragada zero

Nova-iorquinos se adaptam à vida numa cidade onde agora é proibido fumar até nos bares

Nova York sempre foi um bastião da luta antitabagista. Há anos as tragadas são proibidíssimas no saguão dos prédios, nos elevadores, nos escritórios, nas lojas, nos restaurantes, no metrô, no ônibus e em cada centímetro fechado dos aeroportos. Cena típica da cidade é o grupinho de fumantes enregelados, que em pleno inverno sai do escritório quentinho e vai para a calçada render-se ao vício. Depois de tantas batalhas perdidas, o derradeiro refúgio dos fumantes eram os bares e as casas noturnas, lugares que pela própria natureza ofereceriam uma certa tolerância, se não conivência – beber e fumar são atos que se alimentam mutuamente, e engordam os lucros dos pontos comerciais onde isso é feito em larga escala. Agora, nem isso restou. Há dois meses a cidade convive com a lei baixada pelo prefeito Michael Bloomberg, ex-fumante convertido em antitabagista arrebatado, proibindo que se fume em todo e qualquer local público fechado por um teto e quatro paredes. A lei entrou em vigor em 1º de abril e prevê multas que vão de 200 a 1 000 dólares; quem infringir a regra mais de três vezes em um trimestre perde o alvará de funcionamento. Clubes de charutos, pela própria natureza do negócio, são isentos, e estabelecimentos com mesas ao ar livre podem reservar até 25% desses lugares a fumantes. E é só. No resto dos 25.000 bares e restaurantes da cidade, é conformar-se e não fumar.

O principal argumento esgrimido por Bloomberg foi que a medida se destina a proteger garçons e demais fumantes passivos que trabalham em bares e casas noturnas. Esse é um terreno em que os argumentos objetivos costumam ser obscurecidos por interesses conflitantes. Os antitabagistas militantes tendem a exagerar os efeitos do fumo passivo como forma de enfatizar a natureza deletéria do cigarro, esta sim comprovada acima de qualquer dúvida. A indústria (e muitos fumantes ansiosos) força a barra no sentido oposto, como num recente estudo, publicado pelo British Medical Journal, que acompanhou longamente 35 000 pessoas que viviam com fumantes. Resultado: os fumantes, de fato, morrem mais cedo em decorrência do vício. Seus companheiros, no entanto, pouco foram afetados pelo cigarro conjugal.

Com ou sem comprovação científica, Bloomberg foi em frente, apoiado pela opinião pública (embora ainda existam 23% de americanos que ousam acender seu cigarrinho, um número impressionante diante do vigor das campanhas antitabagistas e do opróbrio social imposto aos fumantes). Obrigados, de má vontade, a se adaptar, os bares e as boates de Nova York fazem ginástica para controlar a freguesia. Muitos contratam leões-de-chácara para apagar o cigarro dos rebeldes. A cantora Britney Spears já saiu indignada de mais de um estabelecimento em que lhe pediram que apagasse o cigarro. Num caso extremo, o segurança Dana Blake, 32 anos, 1,83 metro de altura e 145 quilos, foi morto a facadas por um cliente fumante na casa noturna Guernica. "Não creio que tenhamos perdido clientes, que chegam a 1.000 nas noites de sábado. Mas é muito chato pedir que saiam para dar uma tragada", diz T.J. Reynolds, gerente do Lemon, bar badalado de Manhattan. "A proibição incomoda. Mas, pelo menos, depois que a lei entrou em vigor mais pessoas estão fazendo refeições aqui no bar", comenta Diana Biederman, relações-públicas do 21 Club, legendário bar-restaurante que também vende charutos – este, o negócio mais afetado da casa. "Vendemos 75 charutos em abril, comparados a 328 em março", contabiliza Diana. No bar do hotel Hudson, onde acontece a happy hour mais comentada da cidade, a proibição de Bloomberg atrapalha, mas não chega a desanimar a bem-vestida multidão, que conta com um espaço a céu aberto (dotado, inclusive, de disputada cama de casal) bem em frente, no próprio saguão do hotel. Confortável, mas pequeno: o pátio tem lugar para oitenta pessoas, mas só em 25% da área pode haver gente fumando.

Pouquíssimos locais, no entanto, contam com opções do gênero. Na imensa maioria dos bares e casas noturnas, ninguém fuma mesmo, ainda que seja gente do nível de celebridade de nova-iorquinas honorárias como a modelo Gisele Bündchen – fã de caipirinha com cigarro – ou a atriz Nicole Kidman. A brigada antifumo, insatisfeita, agora reclama do barulho e das cinzas nas calçadas causados pelos fumantes que, em plena madrugada, saem dos bares para dar suas tragadas. Encostados na parede, os nova-iorquinos que já pagam 7,5 dólares (pouco mais de 20 reais) por um maço de cigarros estão tomando uma atitude radical: o caminho do vizinho Estado de Nova Jersey, onde o glamour é zero, mas o cigarro é barato e os bares, enfumaçados. Ainda.

Revista Veja - edição 1806 - 11 de junho de 2.003.